A maquiadora e tatuadora Fernanda Mello na Revista ONE
Dois artistas. De um lado, o fotógrafo professor Brasílio Wille. De outro, a maquiadora e tatuadora Fernanda Mello. Juntos, eles somam o lado artístico, o talento profissional, os laços do passado e as particularidades de serem artistas e viverem ligados em 220v. A imagem da capa da Edição impressa #16 da One não revela a data de toda a produção, mas nós te contamos. Em uma tarde cinzenta de domingo, Brasílio e Fernanda decidiram se reunir para alinhar as suas loucuras e ver no que aquilo tudo iria dar. O blackwork, ou seja, a tatuagem sem cor com uma grande região pigmentada apenas de tinta preta estampada na capa foi criação da mente inquieta de Fernanda. Já o conjunto de toda a iluminação e o clique da câmera na fração do segundo exato foi de total responsabilidade de Brasílio. O resto foi pensado em conjunto.
Naquele mesmo domingo, o trabalho havia deixado a equipe One de queixo caído. Aplaudimos ao ver as fotos e confesso que ninguém na redação imaginaria como tudo havia acontecido, uma produção no estilo: sem querer, querendo. “Meu hobby é o meu trabalho. A foto de capa é resultado disso. De um fim de semana em que eu e a Fernanda quisemos produzir”, relembra Brasílio que faz questão de se reinventar diariamente e compartilha isso com Fernanda. “A partir do momento em que o seu trabalho mexe com a emoção de uma pessoa, você, como artista, fica realizado”, contextualiza Fernanda, que aproveitou o tempo com Brasílio para colocar sua personalidade forte no estúdio e produzir.
Assim como o início da produção desta capa, a amizade dos dois teve um começo e, por ironia ou não do destino, também aconteceu em um fim de semana. Sem contar o ano exato para que o leitor não descubra a real idade dos artistas, vamos pular as décadas e passar ao que interessa. O encontro dos dois aconteceu por obra do acaso durante uma exposição fotográfica de Brasílio. No local, Fernanda se apresentou como maquiadora e pediu uma oportunidade para trabalhar com ele em seu estúdio. A ideia foi aceita e Fernanda ficou durante quatro anos e meio aprendendo as pinceladas certas. “Maquiagem é um trabalho de luz e sombra”, revela Brasílio ao se lembrar dos primeiros contatos com Fernanda. “Além de aprender a maquiar, ele me deixava criar e eu aprendia sem ser ‘castrada’”, finaliza ela ao som da gargalhada dos dois.
Bacharel em Gravura na Escola de Belas Artes do Paraná e aluna ‘quase’ formada no curso de Educação Artística, Fernanda sempre gostou de desenhar e encontrou na maquiagem sua primeira forma de ganhar dinheiro. “Não é fácil ser artista, tive que inventar algo para sobreviver financeiramente”, explica a libriana que aos poucos foi se reinventando. Assim como Fernanda, Brasílio é daqueles profissionais que gosta de se reciclar e procura saídas diferentes para fugir da mesmice.
Quanto ao início de carreira do atual fotógrafo e professor, são outros quinhentos. Brasílio encontrou a sua profissão durante a brincadeira de desmontar uma câmera fotográfica que ele havia ganhado, mas estava estragada. Ao remontar as peças, com 15 anos de idade, passou a levar a foto como hobby. Enquanto isso, cursou Fisioterapia e Administração e até hoje sente a importância de ter passado por essas áreas. “Na Fisio, você estuda como funciona o corpo e entende que o sorriso está ligado ao seu dedão do pé e assim por diante”, explica Brasílio que atualmente é fotógrafo profissional, autodidata, consultor e professor de Fotografia.
No início da carreira, Brasílio precisou de paciência e bons argumentos para explicar ao seu pai que o mundo da fotografia não era algo fútil e muito menos social. “Quem não tinha profissão, virava fotógrafo”, lembra o preconceito que existia na época em que decidiu seguir a carreira. Para não bater de frente, Brasílio deu início a fotografia com cliques publicitários e, aos poucos, foi se aprofundando nas técnicas. “A fotografia é um vício bom, pois trago recordações às pessoas”, define o professor que admite não gostar de fotos documentais e preferir clicar gente. “Gosto de fotografar pessoas com linguagem corporal delas e, para isso, eu preciso interpretá-las. A mídia gosta de vender um pedaço de peito e outro de bunda. Se você não entender o corpo, você não consegue uma boa foto”, finaliza.
Com a mesma propriedade que Brasílio fala da foto, Fernanda Mello discorre sobre os traços na pele e como chegou a virar tatuadora. Durante o tempo em que só maquiava, sentia falta de fazer os seus antigos rabiscos e foi buscar outro atrativo para a suas mãos leves e rápidas no desenho. Responsável por cinco, das sete tatuagens que hoje marcam o corpo de Fernanda, a tatuadora e mestre no assunto, Raquel Zasso – Estúdio Tatto Zasso – foi a responsável por deixar a libriana expert no assunto. “A primeira que eu fiz foi no estilo free hands, ou seja, sem decalque”, descreve Fernanda ao se lembrar da sua primeira atuação. “A tatuagem foi feita direta na pele de um menino que queria fechar as costas. Todos falavam que a Raquel era louca em me deixar fazer isso, mas eu fui lá, fiz e o menino adorou”, termina.
Os traços de cada tatuagem que Fernanda faz são personalizados, assim como os cliques e o olhar individual que Brasílio tem a cada um de seus clientes. No primeiro encontro, a pessoa conta o que deseja fazer e, em cima disso, a tatuadora cria a identidade do desenho. Já Brasílio, usa dos seus anos de prática para enxergar o melhor de cada pessoa: “Eu, particularmente, não sigo padrões e as minhas tatuagens têm um lado mais realista e lúdico. Gosto mesmo é de criar”, explica e complementa: “As pessoas gostam de padrões, mas não existem pessoas iguais, com expressões corporais iguais”. Ser original é o caminho.
Atento às mudanças diárias, Brasílio Wille saiu à frente de muitos profissionais. Percebeu o crescimento da tecnologia e reconheceu o início da fotografia digital como a maior revolução da área. “A prática faz você enxergar as coisas”, afirma o taurino que desde 1981 estuda os processos digitais e participou como coordenador da implantação do primeiro laboratório digital do Sul do país. Seu talento ímpar revolucionou a fotografia que hoje é utilizada em quase todos os setores tecnológicos, desde chips a cirurgias. “Eu não quero ser famoso, quero ser conhecido”, sustenta Brasílio ao falar sobre o amanhã. “Pensar, elaborar, criar e produzir. Quero morrer fazendo isso”, respira fundo e sorri.
Fernanda também se destaca com seus traços finos e realistas, misturados com ideias lúdicas e criações personalizadas para cada cliente. Diferente do que se costuma rotular, as mãos da tatuadora não deslizam sob a definição de um estilo só, mas, sim, com uma mistura deles – old school, new school, new trade, tribal, aquarela, maori, geométrica, pontilhismo, realista e por aí vai. “Minha marca registrada é que em todos os meus desenhos, coloridos ou não, tem luz e sombra”, conta a tatuadora e enfatiza. “Quero sempre poder criar e ver as pessoas contentes com a minha criação” finaliza ela com um sorriso sincero e nada tímido.
No mesmo instante, fito o olhar para ela e lanço a pergunta: “Fernanda, em que você pensa quando está tatuando alguém?” “Ai, não sei”, responde ela. Enquanto tenta pensar em uma boa resposta, Fernanda reflete a questão com seu colega e eterno professor: “E você, Brasílio, o que pensa durante as fotos?” O fotógrafo – que nunca fica sem palavras, argumentos e bons exemplos – responde: “Acho que eu fico em transe, olho para o ponto físico, é meio intuitivo de cada pessoa”, termina em clima de confirmação com a colega.
Outro tema em que eles concordam é a dificuldade que as pessoas têm de serem originais. Segundo eles, vivemos em um mundo de réplicas, onde a população procura seguir padrões e o fato de ser diferente nem sempre pode parecer algo positivo. “Você tem que ser você mesmo e não o que os outros querem que você seja. Um cantor não pode ser cantor com a voz de outra pessoa. Ele até pode cantar a mesma música, mas nunca será a mesma pessoa”, contextualiza Brasílio, e Fernanda termina “Eu não gosto de estar presa, não gosto de regras e de padrões. Não gosto de ser classificada”.
Brasílio Wille e Fernanda Mello em foto de Lex Kozlik para One Curitiba
Fernanda Mello e Brasílio Wille em foto de Lex Kozlik para One Curitiba
Foto & Tatuagem
Coisas do arco da velha também acontecem no dia a dia dos profissionais. Nada do outro mundo, apenas histórias que jamais serão esquecidas. Fernanda começa lembrando o que é a tatuagem e o motivo de ela fazer parte de cada pessoa. “As pessoas tatuam um ritual ou um novo conceito, para marcar algo que aconteceu em sua vida ou para fazer algo diferente, uma espécie de renovação”, descreve e relembra de uma situação. “Lembro quando atendi uma pessoa que queria fazer uma tatoo para cobrir outra. Durante a sessão, ela chorava muito, como se realmente estivesse encerrando uma história”, finaliza a artista que acredita na importância desse tipo de atitude.
Sobre as verdades, balelas e os mitos da sua arte, Fernanda começa a rir: “Tem cada coisa absurda que me perguntam”. Segundo ela, a mais comum é quando perguntam se é preciso ter um número ímpar de tatuagens no corpo e se o ato de se tatuar vicia. “Eu sempre respondo: não gente, nada a ver. O fato é que quando a pessoa gosta do resultado e perde o medo, ela acaba querendo fazendo outras”, explica com a mesma atenção em que faz questão de dar a cada pessoa que entra em sua sala.
Falando em luz e sombra, pergunto se existe algum empecilho para fazer uma boa foto com alguém tatuado. Brasílio responde: “Tatuagem não é um empecilho, a não ser que ela seja feia”, brinca ele e discorre: “Como fotógrafo, sempre irei valorizar aquilo que é parte integrada da pessoa”. Olho para Fernanda e ela completa: “Às vezes as pessoas acham que tatuagem é carimbo e não é. Por isso o corpo da pessoa precisa ser analisado e a montagem do desenho deve ser feita de acordo com a anatomia de cada um”, esclarece e dá corte para o fotógrafo finalizar: “A foto pode ter várias conotações. Um olhar é mais forte do que uma saia curta”.
Brasílio é do estilo de fotógrafo que não gosta de aparecer. Faz questão de não mostrar a sua família, não é de ter vida social e agradece o fato de ter um estúdio hoje, onde consegue fotografar com a luz – já que a cidade não ajuda nesse quesito. “Aqui em Curitiba precisamos trabalhar com muita luz, porque dos 365 dias, 302 são nublados na cidade”, ironiza. O fotógrafo reúne em seu estúdio o espaço adequado para todas as suas produções diárias – publicidade, books, editoriais – e um sala de aula em que ministra cursos sobre tudo aquilo que precisou aprender durante toda a sua vivência atrás das câmeras. “Hoje, 10 anos de aprendizado eu consigo passar em 4, 5h da aula. É aquela coisa: por que sua mão não erra o garfo levado à boca? Costume, assim como eu tenho em ver a foto e o conjunto”, revela a sua facilidade nos cliques.
Coisas do arco da velha também acontecem no dia a dia dos profissionais. “Tenho um post de uma menina na minha sala que fotografei uma vez, mas, só de vê-la todos os dias ali, ela me parece íntima”, confessa a sua loucura. Nada do outro mundo. Assim como os clientes que pedem uma transformação na foto ou aquelas que precisam de uma sessão de terapia durante a tatuagem. “Sou meio psicóloga às vezes, pois acabo lidando com gente e preciso entender os limites e as dificuldades de todos”, esclarece Fernanda com pleno alvará de Brasílio. “A foto mais difícil para mim é sempre aquela em que a pessoa está muito maquiada”, revela o fotógrafo que já perdeu as contas de quantas vezes pediu para a pessoa ir até o banheiro lavar o rosto. “Pessoa não é só corpo, é coração”, finaliza ele ao contar que gosta de clicar os contornos mais reais, as sardinhas esquecidas e toda a linguagem camuflada.
Assim como Brasílio e Fernanda, a fotografia e a tatuagem têm muito em comum. A arte de fotografar carrega a proposta de documentar uma emoção e registrar o fragmento de algo que aconteceu. Da mesma forma, a tatuagem cumpre o seu papel eternizando um acontecimento importante ou deixando a marca de algum elemento especial para a sua vida. Ambas são arte e foram traduzidas como uma forma de expressão que garante as diferenças e não vê graça nas réplicas. Juntos, eles – Brasílio e Fernanda e a fotografia e a tatuagem – podem criar muitas outras pontes e (re)inventar tantas outras composições à base da luz e da sombra.
Fonte:
http://www.onecuritiba.com.br/luz-e-sombra/
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